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capítulo 6: REGÊNCIA - ES

  • Padu
  • 30 de jun. de 2018
  • 4 min de leitura

ficamos poucos dias em Regência e foi difícil adentrar a complexidade do lugar em tão pouco tempo. tanto não vimos que no último dia saímos ambos com crise de conjuntivite, menos (lógico) o Rudá, que em matéria de visão e percepção é mestre. nem sempre ficamos em cada lugar o quanto gostaríamos. as vezes nem dá tempo de adentrar de verdade nos lugares. mas esse é o desafio de viajar com nosso filho e entender o tempo que é saudável para nós. principalmente, o tempo que é saudável para ele.

portanto, as palavras que aqui fluírem passarão longe de tentar dar conta de um lugar tão potente e complexo. são percepções, sensações do pequeno recorte da nossa visão e experiência.

fui com a expectativa de uma "região que passou por um crime ambiental" e toda a carga fatalista que isso carrega, mas fui surpreendida por uma região que quer ser vista para além de uma cidade que sofreu o maior crime ambiental do país.

em novembro, faz 3 anos que a barragem de Mariana, da mineradora Samarco, se rompeu e derramou uma enxurrada de lama e rejeitos de minério no Rio Doce, atingindo cerca de 40 cidades de Minas Gerais e Espírito Santo, deixando famílias sem casa, matando pessoas e animais.

Regência, distrito de Linhares -ES, região da foz do Rio Doce (onde o Rio Doce encontra o mar), sofreu um impacto na subsistência da comunidade: pesca e turismo/lazer da prática de surf. a história dos moradores de Regência é/se construiu na relação com as águas.

como "soluções" para o crime, a Samarco criou a fundação Renova, que escolhe, a partir dos seus critérios e fiscalizações, quem merece ou não receber uma quantia mensal (cartão-auxílio) para sobreviver. nenhuma solução foi trazida para a questão da limpeza e cuidado das águas. a água potável vem de caminhão diariamente de Linhares, cidade próxima, abastecendo a cisterna da comunidade, mas não é recomendada ingestão. para beber, resta a escolha de comprar galões de água vendidos no comércio local.

ouvimos de diferentes vozes a necessidade de transmutar o sentimento de desesperança na vila, ao mesmo tempo que ouvimos de diferentes vozes uma desesperança e rancor em relação às algumas ações que foram feitas para a comunidade depois do crime, em muitas vezes baseada em interesses individuais, jornalísticos e econômicos. em muitas vezes, aproveitando a situação de vulnerabilidade da região. isso gerou um sentimento de desconfiança de parte da comunidade em relação às ações e propostas vindas de fora. ouvimos um pedido de qualidade de vida e de valorização da comunidade, mas de dentro pra fora.

- de dentro-

Regência tem como herói o Caboclo Bernardo, pescador Bernardo José dos Santos, que enfrentou a correnteza do rio e o mar perigoso para salvar o cruzador Imperial Marinheiro. por esse ato, Princesa Isabel condecorou Bernardo com uma medalha de ouro e ofereceu a ele um presente. Caboclo Bernardo pediu então um farol para a vila, evitando mais acidentes para os que navegavam no oceano. o farol hoje existe como monumento na praça central da vila. Seu Miúdo, Elídio Angelo de Macedo, foi o principal guardião da memória do caboclo e grande incentivador do Congo.

o Congo também é um forte ponto cultural tradicional da vila, tendo início na cultura indígena dos botocudos e agregando manifestações da cultura negra.

Regência é um ponto de desova de tartarugas marinhas e com uma grande atuação do projeto Tamar. sua sede fica na praça central da vila, abrigando um museu, biblioteca infantil, aulas gratuitas para a comunidade e um pé de jambo que foi amor à primeira vista, onde Rudá provou o sabor do jambo pela primeira vez.

ficamos hospedados no espaço cultural da Casa Rosa, onde também acompanhamos as atividades da semana. o motivo para irmos para Regência foi, principalmente, conhecer esse centro cultural.

quem nos conectou ao espaço foi o Marcelo, linharense que morava fora do Brasil e que, após o crime ambiental, decidiu retornar para Regência e iniciar o projeto da Casa Rosa, espaço cultural coletivo.

em suas paredes, registros artísticos da memória do Rio Doce criados por muitas mãos que por lá passaram. reinvenções artísticas da realidade como ato político e coletivo. a proposta é que o espaço seja coletivo, comunitário, sustentável e cultural. durante a semana, acontecem aulas de inglês, dadas pelo Marcelo e violão, dadas pelo Yan, neto do Seu Miúdo, para crianças e adolescentes da comunidade.

foi na Casa Rosa onde aconteceu o Festival Regenera Rio Doce, tocado pelo Coletivo Aliança Rio Doce, de 14 a 30 de julho de 2017. o encontrou juntou muitas pessoas em volta do tema da regeneração das águas do Rio Doce, contando com uma programação de oficinas, rodas de conversa e ações comunitárias. esse festival criou o Fundo Regenera, com os recursos economizados do encontro e com o objetivo de incentivar outras ações regenerativas na região.

tivemos uma tarde de conversa com Hauley e Flavia, integrantes do Coletivo Aliança Rio Doce, que nos apresentaram a alguns movimentos comunitários e perspectivas políticas mais complexas de Regência. em pequenos passos e incentivos micropolíticos, como a criação da Feira da Vila, uma feira de artesanatos, trocas e comidas, resiste e reside um desejo de compartilhar, cuidar e resgatar saberes locais e ancestrais.

uma barreira rompida gera muitas barreiras relacionais. barreiras complexas de serem dissolvidas e que um cartão-auxílio passa longe de dissolver. o dinheiro não cala as contradições, opiniões, desconfianças, descrenças, inseguranças, luta, luto, a vontade de recontar a história e resgatar autoestima.

à Regência, fica nossa vontade de voltar e adentrar mais profundamente suas complexidades e potências, e nosso agradecimento pelos aprendizados nas simplicidades dos olhares.

-- nossa maior referência de registro artístico de Regência é o trabalho do fotógrafo Lucas Landau, do qual nos inspiramos e recomendamos imensamente saber mais: www.lucaslandau.com/regencia

para saber mais sobre a Aliança Rio Doce: www.aliancariodoce.org

--

relato: Padu

fotos: João Pedro Orban


 
 
 

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