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capítulo 4: AS DOZE TRIBOS

  • Padu
  • 2 de mai. de 2018
  • 4 min de leitura

pouco sabíamos desse lugar antes de chegarmos nele. parados na porteira, uma placa enunciava "as doze tribos". desta placa, resta a única foto do período que estivemos lá, tirada do celular. deixando mais dúvidas ainda se estivemos mesmo nesse lugar tão fora do comum.

passos depois da entrada, parecíamos em outro país. passeando pelos campos de plantação, mulheres e crianças vestidas de forma simples com batas e calças saruel. homens de blusa de botão xadrez, calças compridas e uma faixa no centro da testa, caminhando com a calma de quem caminha cem vezes por dia repetindo uma mesma rotina. foi muito difícil estacionar a mente em algum lugar conhecido. estávamos sem referências para ler o que eram, o que faziam, como se portavam. na dúvida, tentamos ser receptivos e evitar os pensamentos julgadores que tentavam definir as primeiras impressões dos lugares e pessoas.

éramos seres extraterrestres. de fato, bem de fora daquela terra. e mesmo claramente diferentes, foram incontáveis as vezes que ouvimos "sejam bem vindos", recebidos com uma calma de quem já havia recebido nós mesmos centenas vezes naquele mesmo lugar. acredito nunca termos sido tão bem recebidos em nenhum lugar, com tanto acolhimento e vontade de nos conhecer. isso alimentou em nós uma esperança enorme de humanidade, de solidariedade e de receptividade. não era necessário que fossemos nada, que dissemos nada: éramos bem vindos.

são pessoas que tentam viver assim como eram as doze tribos de Israel, na época de Jesus (para eles, Yashua). fomos acompanhados por toda a comunidade, sempre recebidos com sorrisos acolhedores, olhares curiosos, perguntas curiosas sobre onde viemos, o que fazemos, para onde vamos. comida, mate, conversa atenciosa. "instigados" pouco define como nos sentíamos, estávamos mesmo não cabendo nos pensamentos, com uma necessidade excessiva de querer entender. foi de longe o lugar mais contraditório que nos encontramos. em algum lugar, sempre nos sentíamos pisando em falso.

aquela era uma comunidade de mais de cem pessoas vivendo fora do sistema e com autonomia: plantando orgânicos; vendendo uma produção própria de chá orgânico; crianças educadas pela comunidade; sem televisão; sem celular; sem internet; festejando com muitas músicas e danças circulares; muita comida de qualidade e de graça; refeições coletivas todos os dias; reuniões diárias para trocas de experiências e ensinamentos sobre as mensagens divinas e aprendizados; ninguém tendo posse alguma, toda as posses eram de toda a comunidade; todos acreditando em uma força maior que rege a humanidade, compreendendo a fé, mas criticando instituições religiosas, porque de nada adianta instituição se não conseguimos viver em irmandade. olhar para isso e receber um acolhimento a cada passo foi o suficiente para nos inebriarmos e nos emocionarmos com tamanha comunhão. dançamos e comemos, levamos uma cesta de comidas e pães ao final da noite. mas nosso passo ainda pisava em falso, ainda sentíamos um buraco no fundo dos pés que incomodava, tirava nossa entrega total para tudo aquilo.

esse buraco é um buraco fundo. um buraco estrutural, tão amaciado pelos sorrisos que foi difícil de ser revelado. fomos dormir na dúvida de quem não sabia o que sentir. na madrugada, sem saber se eu estava acordada ou não, sem saber se imaginava ou sonhava, senti/sonhei sermos engolidos pela comunidade.

acordamos diferentes. menos inebriados. as mulheres só na cozinha e os homens só nos trabalhos braçais e intelectuais já não desciam tão bem. as crianças quietas, obedientes e tímidas já não desciam tão bem. as perguntas excessivas sobre o que éramos e pensávamos já não desciam tão bem. já nem respondíamos tão bem também. percebi que estava estranha quando, com raiva, olhei para o meu filho e vi que ele não se comportava com obediência como todas as crianças na reunião da comunidade pela manhã, quando ele era o único que gritava, enquanto as outras crianças repetiam em alto som o que os adultos sussurravam em seus ouvidos.

as nossas perguntas já não fugiam ao assunto que queríamos ouvir, nem tampouco as respostas que ouvíamos: - mulher precisa se preservar e por isso esconder seu corpo; homem é a fonte e a mulher é a extensão da fonte; mulher não nasce com a habilidade de amar, só o homem; o sentido da vida do homem é encontrar alguém para orientar, o da mulher é para ser orientada; só é possível relação homem-mulher, não é assumida nenhuma outra formação a não ser essa. todo o resto é distúrbio mental; crianças devem ser treinadas a temer o pai e a mãe, para, desta forma, aprenderem a temer a Deus (aquele com D maiúsculo mesmo). e esses valores se sustentam dentro das casas, nas reuniões da comunidade, nas educações dos filhos. só é possível estar lá, se compatível com esses valores, se em comunhão com esses valores.

estávamos revirados. no segundo dia, enquanto a ficha foi caindo, foi surgindo uma vontade imensa de fugir. mas estávamos presos em uma contradição de sentimentos de não querer "fazer desfeita" com tanta benfeitoria , mas ao mesmo tempo, indignação por sermos testemunhas daqueles valores.

saímos de lá as pressas, sem nem explicar muito o porquê. sem nem conseguir entender os sentimentos e nem ao ponto de sermos francos. imaginamos aquelas pessoas todas, sem exceção, tendo comida e moradia para viver com dignidade, e imaginamos quem vive no sistema não tendo o que comer, e -puf- nossa mente fundiu. imaginamos aqueles valores não compatíveis com os nossos e imaginamos a nossa sociedade inteira pautada em tanta violência e intolerância e nossa mente fundiu. e funde até hoje. e acho que fundirá continuamente até conseguirmos compartilhar essa história, ouvir as percepções e poder dissolver as contradições dela na nossa mente.

em termos de autonomia do sistema, foi inacreditável perceber essa comunidade existindo. sendo possível. criando uma alternativa. vivendo uma outra cultura. em termos de valores, também foi igualmente inacreditável perceber a existência dessa comunidade. por isso, escolhemos sair. não pertencíamos ali. por não sermos compatíveis, saímos. mas e da nossa cultura? por que é tão difícil criar formas de sair? por que continuamos perpetuando os valores opressores desse sistema, cultura e visão de mundo?


 
 
 

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